Triste notícia para o último dia do ano. O site do Estadão anuncia a morte prematura do jornalista Daniel Piza. Com apenas 41 anos, três filhos e muitos, muitos planos. Entre setembro e outubro de 2010 tive a oportunidade de participar de um curso de jornalismo cultural ministrado por ele na faculdade Cásper Líbero e um professor da minha faculdade pediu para que eu o entrevistasse. O resultado desse bate-papo vocês podem ler a seguir:
Sujando os gêneros
Um dos mais reconhecidos jornalistas culturais do Brasil, Daniel Piza é um daqueles sortudos que já vem ao mundo com uma marquinha (não sei se é talento, sorte, esforço, ou oportunidade), que é coisa rara. Ignorou todos os indícios de sua profissão que a vida deu: resolveu fazer Direito, queria ser diplomata. Claro que não deu certo. Quem nasce com essas marquinhas, acaba cedo ou tarde cumprindo sua sina. Acabou abandonando a faculdade e caiu no colo de seus ídolos Paulo Francis e Ruy Castro dentro da redação do jornal Estadão. Ali conquistou seu espaço, deu uma voltinha pela concorrência, e voltou para casa como editor-executivo e colunista.
Durante um curso de Jornalismo Cultural oferecido na faculdade Cásper Líbero, em São Paulo, ministrado pelo próprio Daniel, surgiu a oportunidade de uma breve entrevista. Na primeira tentativa de realizá-la, ele se empolgou durante a aula e encerrou mais de dez horas da noite. Só deu tempo de dar o toque: “ó, quero te entrevistar”. Na semana seguinte, o professor parecia tenso e ansioso, não parava de olhar pro relógio, e para surpresa de todos encerrou a aula pontualmente: “hoje não dá! Tem jogo do Timão”. Pô, se aprendi algo até hoje é que não dá pra discutir contra um argumento desses. Última aula do curso, minha cara já dizia tudo: “não tem como adiar mais, Daniel! Vamos lá?”; “Vamos lá…”
Quando começou essa sua paixão pela arte?
É, minhas grandes paixões são literatura e pintura. Sempre gostei muito de cinema, de certa maneira posso até dizer que eu gosto cada vez mais de cinema. Mas o que eu sempre gostei mesmo foi de literatura. O que eu mais fiz na minha infância era ler, desenhar e folhear livros de arte. Aos 7 anos de idade eu lia Monteiro Lobato e comprava aqueles livros em fascículos na banca sobre história da arte e ficava lá anotando, copiando os quadros, e tudo mais. Obviamente muita gente faz isso na infância, mas não dá continuidade. Eu tive um estalo lá pros 14 anos de realmente virar um leitor voraz, onívoro, que foi quando eu li dois livros: Quincas Borba, de Machado de Assis, pela escola mesmo; e Crime e Castigo, de Dostoiésvsky, por causa de um artigo do Paulo Francis. Foram esses dois livros que me despertaram pra letras. Eu já tinha uma coisa de gostar de escrever, eu era muito bom nas aulas de redação e português, mas não era uma coisa muito diferente de alguns amigos meus e de um dos meus irmãos.
Você interrompeu sua faculdade de Direito para escrever resenhas. Quando “despertou” esse interesse e essa vocação para escrever coisas do gênero?
Em 1983 eu assisti um filme do Coppola (Francis Ford Coppola), O Selvagem da Motocicleta (Rumble Fish, 1983), eu tinha 13 anos e fiquei louco com o filme. Eu tinha um caderno da escola, acho que era de português, que eu virei ao contrário e escrevi dez páginas de um ensaio sobre o filme com as minhas interpretações: aquela história da única cena do filme que é colorida, as falas do personagem do Mickey Rourke, e tudo mais. Ali, se alguém da minha família visse aquilo identificaria uma vocação. Mais tarde, com 16 anos, fiz um texto sobre o escritor Scott Fitzgerald porque fiquei apaixonado pelas histórias dele. Depois publiquei esse mesmo texto no jornal da faculdade, claro que dei uma revisada, e foi esse mesmo texto que mandei pro Paulo Francis.
Como foi entrar em uma redação sem o respaldo de uma faculdade de Jornalismo? Houve alguma dificuldade na adaptação?
Não, na verdade eles me botaram alguns meses pra trabalhar na geral, mas eu já fazia resenhas por conta própria. A minha segunda matéria na minha carreira inteira foi uma capa no Caderno 2 (do jornal O Estado de S. Paulo) do Edmund Wilson. Mas eu fiquei algum tempo na reportagem pra pegar um pouco da técnica do dia-a-dia de uma redação.
Como você começou a escrever para o Estadão?
Eu mandei meus textos para escritores e jornalistas que eu admirava. Dois responderam, um deles foi o Ruy Castro, que me telefonou: “Daniel, aqui é o Ruy Castro, gostei muito dos seus textos, já falei pro pessoal do Estadão pra você fazer umas resenhas lá”; e depois de um mês, o (Paulo) Francis me escreveu dizendo que tinha me indicado pro editor do Caderno 2, na época José Onofre, que em certa ocasião nos encontramos e ele me disse: “Olha, pega esse livro aqui e faz uma resenha”. Lembro que era um livro de ensaios sobre o Brasil de um sociólogo. Depois pediram pra fazer outra de um livro do Edmund Wilson que virou capa em julho de 1991, eu tinha 21 anos e tava no quarto ano da faculdade. Em setembro, o Hamilton Dos Santos me ligou e falou:
“Olha, eu tenho uma vaga aqui e eu quero que você venha trabalhar na redação.”
Eu respondi: “Mas eu ainda nem terminei a faculdade…”
“Se quer ou não quer?!”
Ai eu não agüentei e falei “Eu quero!” [risos].
E fui. Algumas semanas depois já me contrataram, com salário fixo, registrado e tudo mais.
Levando em consideração sua história com o jornalismo: qual sua posição em relação à obrigatoriedade do diploma de Jornalismo?
Olha, eu afirmo sem o menor constrangimento, que mesmo se eu tivesse feito faculdade de jornalismo eu seria contra a obrigatoriedade. E por um motivo simples: em nenhum lugar do mundo existe a obrigatoriedade do diploma para exercer jornalismo. Porque talento para escrever e esperteza para apurar você encontra em todas as faculdades. O modelo que eu acho mais legal é o modelo americano, que é o seguinte: você vai pra faculdade de, por exemplo, história ou letras (que são as duas que mais produzem jornalistas) e faz uma graduação de 4 anos lá e depois você faz uma outra faculdade de dois anos que é como se fosse uma especialização em Jornalismo.
Eu acho isso mais legal do que você ir direto para o jornalismo, fazer 4 anos de graduação e cair numa redação. Se você pega um cara que entenda de economia e escreve bem, é muito mais fácil ele virar um bom jornalista de economia, do que alguém que se formou em jornalismo e entende de economia. Mas mesmo sem a obrigatoriedade, as últimas 50 contratações dentro do Estadão, 45 se formaram em jornalismo. Porque é o caminho natural do mercado mesmo. O cara fez jornalismo, então ele já tem algumas noções, já escreve, já produziu alguma coisa na faculdade, tem um currículo mais voltado pra essa área, então fica mais fácil a contratação. Os bons empregos tem que ir para as pessoas boas. E nem sempre essa pessoa é formada em jornalismo. Paulo Francis não fez jornalismo, Jânio de Freitas não fez jornalismo, Ruy castro também não, e são alguns dos melhores jornalistas do Brasil em disparado. Meus ídolos sempre foram: Paulo Francis, Millôr Fernandes, Ivan Lessa, Ruy Castro, e Sérgio Augusto. É meu quinteto, meu “top five”. E nenhum deles fez jornalismo.
E hoje em dia você produz alguma coisa, mesmo como hobby? Como pintar, fotografar ou tocar?
Eu gosto de desenhar! Eu fui pra China, uns dois anos atrás, e trouxe um material de lá e estou fascinado! Mas aí é só pra consumo interno. E agora to escrevendo muita ficção. Publiquei um livro de contos esse ano, que de certa maneira era o que eu fazia antes de ser jornalista. Eu escrevia contos, escrevia romance, escrevia poesia… Fiz poesia concreta! [risos] Fazia charge, caricatura, participava de concursos de desenho. Com 13 pra 14 anos, a coisa que eu mais fazia era escrever poesia. Mais tarde eu cheguei a publicar algumas no jornal da faculdade. Tem amigos meus que me lembram disso até hoje! [risos] E o colégio que eu estudei publicava um livrinho chamado “Composições” e eu tenho até hoje um desses em casa que saiu um conto meu. Com 35 anos eu voltei a escrever minicontos de novo, ou seja, mais de 20 anos depois. E o pior é que é a mesma coisa… A mesma tristeza urbana, assim sabe… Meio Edward Hopper. [risos]
E quando chegou o momento de lançar seu primeiro livro, o Senhoritas de Nova York? Como foi o processo de criação?
Na verdade esse foi um livro encomendado. Me procuraram por causa de uma matéria que eu escrevi e queriam que alguém escrevesse um livro sobre Picasso para jovens em forma de romance. Eu não queria escrever um livro quadrado, como uma biografia didática. Tudo o que eu faço, eu tento sujar o gênero: se vou escrever um conto, eu ponho uma pitada de ensaio; quando eu faço artigo, tento dar uma cara de crônica. Quando eu fiz a biografia do Machado de Assis, eu botei uma coisa de crítico muito forte, não é só uma biografia narrativa, intelectual, é uma biografia interpretativa também. É uma coisa que não é tão comum no Brasil, né?
Em relação ao restrito mercado cultural brasileiro, onde você acredita que esteja o impedimento para o crescimento desse nicho? É falta de interesse das empresas midiáticas, ou falta de público com interesse?
Eu acho que criticam muito os jornais porque eles falam uma linguagem pra pouca gente. Mas na verdade os jornais impressos chegam a uma parcela muito pequena da população. Eu acho que as TVs deveriam falar mais de cultura. Você vê o Jornal Nacional inteiro e não tem uma matéria de cultura, e quando tem é porque a fundação Roberto Marinho tá patrocinando. Então o Brasil precisa de uma gama maior de veículos falando de cultura. Não deve ficar tudo nas costas dos três ou quatro jornalões entre São Paulo e Rio.
E o interesse em escrever sobre esportes? Sempre houve ou apareceu como um desafio?
Eu falo que sou boleiro desde as fraldas. Jogava bola de fralda ainda! [risos] Na verdade, é aquela história do Monteiro Lobato: você não pode pedir passagem, você tem que ir se impondo. Então eu tenho essa minha coluna cultural no Estadão, chamada Sinopse, e comecei a falar de futebol lá. Um dia, o editor da redação chegou pra mim e disse: “Tá escrevendo bastante sobre futebol, né?!” – eu achei que fosse levar uma bronca, e falei: “É… futebol é parte da minha vida, não dá pra não falar!”. Ele respondeu: “Ah, então faz uma coluna só sobre futebol”. E virei colunista de futebol. Mas eu sempre quis fazer, porque você fala de um assunto que mexe muito com as paixões das pessoas. Então é um desafio manter a lucidez no meio desse furacão. Uma vez um leitor falou uma coisa legal pra mim: “você faz crítica de livro como quem faz crônica esportiva” – ou seja, com uma leveza que normalmente não tem nessa área – “e você faz crônica esportiva como se fosse crítica literária”, porque às vezes eu enfio umas referências culturais no meio da crônica de futebol, entendeu? É aquela coisa de sujar as fronteiras de novo.
E quanto aos planos futuros? Algum livro a ser lançado?
Na verdade, estou produzindo um livro encomendado por uma editora que trata sobre essa primeira década do século XXI. Estou pensando em chamar de “Os dez anos que encolheram o mundo”, porque o mundo ficou bem pequeno, não é? Desde os atentados às Torres, até as novas tecnologias. E é legal porque é um livro que fala de política, comportamento, cultura, um pouco de tudo. E também tenho vários outros projetos, uma biografia do Iberê Camargo, que pra mim foi o maior pintor brasileiro da segunda metade do século XX. Tem uns projetos ai. Quero fazer um romance, agora que já fiz contos, acho que tá na hora de fazer um romance. Até 2015 eu já tenho a agenda fechada!